
A sétima arte, consolidada pelo cinema, exerce um enorme poder de difusão de conhecimento e informação com as massas. Ao retratar nas telas, histórias de fantasia ou da vida real, o cinema ajuda a compreender quem nós somos e como somos representados. Ou seja, ao mesmo tempo que é uma ferramenta na construção das identidades sociais e pessoais, ele também fomenta a cultura de uma forma acessível ao povo, unindo linguagens visuais e sonoras. Entretanto, o passatempo de ir ao cinema assistir a um filme, apesar de parecer trivial, não pode ser considerado um programa de baixo custo. O acesso e até mesmo distribuição irregular de salas de cinema pelo Brasil apresentam um reflexo das desigualdades econômicas e sociais do país, que promovem o processo de elitização dessa forma de lazer, manifestando-se pelo alto valor do ingresso e do transporte, visando assim um público com poder aquisitivo maior e desconsiderando as camadas populares.
Nesse cenário, a Indústria Cultural utiliza técnicas de produção capitalista sistemáticas para “dar valor” a bens e manifestações artísticas: para quem pode pagar, destinam-se as obras “caras, raras, cultas e inteligentes”. Para a massa, são destinadas as “baratas, comuns e genéricas”. O cinema passa a ser apropriado, em um processo de exclusão social, onde a cultura é negada àqueles que não pertencem à elite. Com isso, pode-se destacar que o aumento ainda precário de salas de cinema no Brasil, quase todas concentradas nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo, não está necessariamente acompanhada de uma facilitação do acesso. Essas salas de cinema são frequentemente situadas em grandes shoppings localizados em centros urbanos e distanciados da periferia. Em uma primeira instância, pode-se pensar que isso é a lei da “oferta e demanda”: no entanto, o afastamento e omissão da população de baixa renda causa alienação de um potencial público. Como acessar o cinema, se o mesmo não é oferecido a eles?
O cinema é um transmissor de mensagens, que auxilia no desenvolvimento do pensamento crítico e senso de pertencimento. Entretanto, no atual cenário brasileiro, a propulsão de medidas democráticas do acesso à cultura é vilanizada, e incentivos ao seu desenvolvimento são barrados por questões ideológicas. Em 2019, a Agência Nacional de Cinema (ANCINE) sofreu ataques e tentativas de censura, direcionados ao “conteúdo” de filmes que havia promovido, entre eles “Bruna Surfistinha”. Além da redução na captação de recursos e orçamento de leis de incentivo, a cinebiografia de Marighella teve sua estreia cancelada após uma recusa da Ancine para o auxílio na
comercialização do filme. Filmes e séries com temática LGBTQI também foram censurados e barrados em processos de seleção em editais. Nas palavras de Fernanda Montenegro “Sem arte, um país não tem caráter...o campo da arte é grande fornecedor de mão de obra”. Entretanto, essa última parte é ignorada pelo governo em si: tanto o fazer cinema como o assistir cinema são importantes medidas no desenvolvimento cultural de um país, movimentando a economia. Os dois, por outro lado, continuam nas mãos apenas de uma elite e afastados do povo em si.
Olhando para o vazio cultural e desserviço com o subúrbio carioca, o Polo Audiovisual Ponto Cine nasce, como resultado de uma parceria entre duas iniciativas de sucesso: o Ponto Cine (EPP) e o Ponto Solidário (OSCIP). O primeiro, ofereceu por um tempo uma ferramenta de divulgação, o "Tela Móvel", ou seja, um veículo com uma tela embutida, uma forma de levar o cinema até os cidadãos, incluindo pipoca e um “lanterninha”, que ajudaria o espectador interessado em ir à sala de cinema presente no Guadalupe Shopping. Com o projeto ProSocialCinema, projeto de formação de plateia para o cinema brasileiro que oferece ingressos gratuitos para ONGs e escolas públicas do subúrbio, nasce a sala de cinema. O cinema está ausente na maioria das cidades brasileiras; no entanto, para o diretor do Ponto Cine, Adailton Medeiros, a sétima arte é “um alimento básico, que alimenta a alma das pessoas e fortalece a consciência de um país”. Não à toa, o slogan “Arroz, Feijão e Cinema" é adotado pelo Ponto Cine, trazendo um público virgem, no qual muitos nunca sequer haviam ido a uma sala de cinema, para assistirem filmes a um preço barato e perto de casa. Em paralelo a isso, o Ponto Solidário realizou diversos projetos sociais ligados ao audiovisual e ao subúrbio, como o Cine Literário, que atuou em 42 escolas da Rede Pública e Ongs voltadas para a Educação, com a doação de Kits com 100 títulos de livros da Literatura Brasileira e 100 filmes adaptados desses livros, além de TVs e Blu-ray players.
Além disso, o Ponto Solidário também já atuou com o "Oficine-se": a ideia de criar uma rede alternativa de exibição dentro das escolas. Grande parte dos cinemas do Rio de Janeiro estão localizados no Centro, ou na Zona Sul e filmes brasileiros, especialmente independentes, estão entre os que menos ficam em cartaz devido ao espaço escasso cedido e a falta de divulgação. O projeto durou duas edições, consistindo na realização de oficinas, com aulas teóricas e práticas sobre toda a cadeia produtiva cinematográfica, com foco na capacitação de exibidores e montagem de uma sala de exibição nas escolas e visando provocar o senso crítico desses jovens, tornando-os protagonistas de suas próprias histórias. O "Oficine-se" foi feito em parceria com a Secretaria Estadual de Educação, onde 33 escolas da rede no interior do estado, participam do projeto. Cada uma indicou um aluno e um professor, e a prioridade foi dada a cidades que não tenham salas de exibição. Com essa oportunidades, criou-se uma chance para produzir e disseminar histórias desses alunos.
Em relação ao famoso "Diálogos com o Cinema", esse projeto vitorioso teve início nas Lonas Culturais, em 1999, precisamente na Lona Cultural Carlos Zéfiro, em Anchieta, numa parceria com o Cinema em Movimento: um dos mais importantes projetos difusores da sétima arte no Brasil. No Ponto Cine, a partir de 2006, tornou-se referência para o mercado cinematográfico, constituindo na exibição de filmes brasileiros inéditos seguidos por debates, às vezes com membros da realização ou então, profissionais de uma área sobre a qual o filme disserte. Nesses eventos, a entrada é franca. Por ele, já passaram nomes como Cacá Diegues, Caetano Veloso, Nelson Pereira dos Santos, Patrícia Pillar, Letícia Sabatella, Matheus Natchergaele, Selton Mello, Caio Blat, entre outros. Nessa linha, o projeto tem como objetivo a alfabetização e educação do olhar e do comportamento através dessas conversas únicas, acreditando na importância de humanização dos encontros, especialmente em uma sala de cinema. Em 2019, o Polo Audiovisual Ponto Cine atuou com o Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ) para a elaboração de dois cursos: Direção para Audiovisual e Interpretações para Produções Audiovisuais. Essa parceria de longa data já se manifestava com diferentes ações como cine-debates. Todo o projeto foi viabilizado com recursos da Secretaria do Audiovisual (SAv) vinculada à Secretaria Especial de Cultura do Ministério da Cidadania.
O tema do Enem em 2019, “Democratização do Acesso ao Cinema no Brasil” gerou um enorme debate na Internet, como qualquer tema do exame. Sua polêmica resultou em alguns encará-lo como um tema elitista; no entanto, a ideia dele é, justamente, de elaborar em cima de um problema ao qual muitos estão submetidos. Em um ano com cortes de verba e censuras na área da cultura, o tema se mostra necessário principalmente ao ver que, muitos dos jovens que discursara sobre ele também não possuem acesso às salas de cinema; espaços limitados nas regiões Norte e Nordeste, por exemplo. Em outros casos, foi levantada a discussão de que o tema não era relevante quando comparado a outros assuntos “mais importantes” como educação, segurança, saúde e saneamento básico. Porém, como foi visto, a democratização do acesso ao cinema, ou falta dela, configura um problema social tão grande quanto às citadas, especialmente ao se enxergar a cultura como algo “extra”, ao invés de um elemento essencial na formação do caráter de um país. Um cenário no qual o Brasil está inserido.
Com isso, o Ponto Cine é um projeto que modifica a vida das pessoas, na elevação da autoestima e no desenvolvimento do senso de pertencimento. Nos últimos anos provocou um deslocamento de Guadalupe, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro, das páginas policiais para os Cadernos de Cultura dos principais Jornais, Revistas e TVs. Oferecendo o máximo de qualidade em som e imagem, conforto e climatização a preços acessíveis e dignidade ao morador de comunidade, o Ponto Cine tornou-se referência para o mercado cinematográfico ao priorizar o acesso e divulgação de filmes brasileiros, jogando luz na arte que é produzida no país. O subúrbio é a raiz e essência do Polo Audiovisual Ponto Cine. Desde o nascimento dos projetos, a maioria da mão de obra se encontra no subúrbio, enquanto as empresas estão no centro da cidade, fazendo com que elas se desloquem. Ao criar um projeto que gira em torno dessas pessoas, mantendo-as no subúrbio e retendo essa geração de renda, cria-se uma maior margem de lucro, bem como contrapartidas sociais maiores.
Nas palavras de José Ortega y Gasset, filósofo espanhol: “A cultura é uma necessidade imprescindível de toda uma vida, é uma dimensão constitutiva da existência humana, como as mãos são um atributo do homem”. Isso fica comprovado ao olhar os filmes produzidos em terras brasileiras: filmes que dissertam e elaboram em cima de temas tão cotidianos do povo: Cidade Deus” é um filme capaz de proporcionar diversão e entretenimento ao mesmo tempo que oferece uma reflexão nos processos históricos de racismo, violência e a formação das favelas no Rio; “Bacurau” trabalhou em cima do combate do colonialismo e elitismo para com um povo subestimado; “As boas maneiras” utilizou de uma lenda clássica no folclore brasileiro para abordar as diferenças de classe e social entre brancos e negros; “ Tito e os Pássaros” é uma animação que discorre sobre os temas de pânico social e manipulação política tão intrínsecos no país; “Menino 23” é um documentário que ajuda a desenterrar uma das mais assustadoras histórias do racismo que estruturou e ainda estrutura o país. E assim por diante.
Com isso, compreendemos que a arte e o acesso a ela não se trata de um capricho, mas sim, uma necessidade de todo ser humano. É uma maneira de conversar e buscar soluções para medos e ansiedades de um tempo e lugar, resgatar a história e sempre mantê-la viva. Ao negar isso a um povo, comete-se o crime de mantê-lo na alienação.
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